Pode um idioma ser uma pátria?

Guilherme Sant'Anna
2 min readNov 10, 2021
Photo by Amador Loureiro on Unsplash

- Minha pátria é a língua portuguesa — disse Fernando Pessoa, na voz do seu heterônimo Bernardo Soares.

Não é essa a experiência que tenho, mesmo que a língua portuguesa seja para mim o que chamam de língua materna. Minha relação com essa língua não é a de patriação ou de filiação — parece mais com a de locador e locatário. E custa caro morar no seu terreno.

Quando me soube nascido, o contrato de aluguel já estava firmado. Porque a língua portuguesa não colonizou apenas geograficamente a terra onde moro, embrasando suas plantas e bichos, mas agarrou as almas daqui também. Fácil criticá-la agora, que vivo nas suas terras, podem dizer. Por que um escravo deveria reclamar do seu senhor, sendo este quem lhe fornece comida e abrigo?

Justamente porque essa comida e esse abrigo custam caro demais: regras gramaticais, toda uma forma de pensar e ver o mundo embutidas na própria constituição dessa língua, misturadas, por sua vez, àquilo que penso do mundo e penso eu mesmo ser. Um idioma que se mete no que sou e no que vejo, na maioria das vezes imperceptivelmente, mas de forma decisiva. Provavelmente, fosse minha língua materna outra, eu teria o mesmo incômodo.

Mas eu tive um vislumbre de liberdade, sim, e um instante de liberdade foi o suficiente para mostrar que a linguagem, seja portuguesa ou qualquer outra, não pode ser minha pátria. No máximo, é onde pago pra morar. Nesse instante livre, não havia palavra alguma, língua qualquer. Súbito, fugaz. Sendo difícil permanecer nesse instante, acabei retornando ao terreno arrendado, minúsculo se comparado à vastidão do horizonte livre. E agora só consigo falar nos termos da proprietária. Ora, preciso reconhecer que esse terreno é maior que outros e agradecer por isso. Posso plantar minhas coisas, criar meus animais — pagando tributos. Falasse eu apenas espanhol, estaria restrito a uma cidade colorida quase planejada, como Curitiba; falasse apenas inglês, me sentiria num bairro grave e muito adjetivado, mas pequeno. Porém, mesmo o mais lindo e amplo feudo se converte em nada perante o infinito.

Essa língua portuguesa é hábil, sabe me fazer retornar não por me coagir — mas por ter me acostumado a temer a liberdade, a qual só o silêncio é capaz de comunicar.

Guilherme Sant’Anna é psicólogo (CRP 05/57577) formado pela UERJ e atualmente cursa o mestrado em Psicologia Social nessa mesma universidade. Ele realiza atendimentos de psicoterapia online e, se você quiser entrar em contato, pode fazê-lo pelos seguintes meios:

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Guilherme Sant'Anna

Psicólogo. Escrevo pois a existência me exige; publico os escritos por saber que as exigências vêm em diversas formas, e as palavras nos ajudam a respondê-las.