Sobre ter muitas almas

Guilherme Sant'Anna
3 min readJun 4, 2021
*Foto por Chris Lawton no Unsplash.

Sabe quando você não se reconhece, ou se espanta consigo mesma/o? Quando a ilusão de ser alguém muito estável e determinada/o sai de cena, e você se depara com suas próprias transformações? Essa experiência, quando provoca desconforto, costuma levar as pessoas a procurarem ajuda. Me chama a atenção que muitas pessoas comecem a fazer terapia por transformações que incomodam, como passarem a ter crises de choro repentinas, ou explosões de raiva, ou por estarem tristes e quererem voltar a ser alegres como antes, por exemplo. Se, por um lado, transformações incômodas podem levar alguém a buscar ajuda, por outro lado, é justamente porque podemos nos transformar que a terapia é possível. Se fôssemos sempre as/os mesmas/os, sem a possibilidade de nos transformarmos para melhor, para modos mais satisfatórios de ser, não faria sentido pensar em terapia.

Fato é que, incômodas ou prazerosas, as mudanças são parte de nosso ser. Somos muitas pessoas numa vida inteira, somos muitas/os até num mesmo dia, em situações diversas. Isso não apenas no jeito de ser, mas também biologicamente falando. Nossos corpos se transformam, se renovam a cada momento.

Quando, nesta semana, me percebi estranhando a mim mesmo, me lembrei dos versos de Fernando Pessoa. O poeta português é conhecido por seus heterônimos, isto é, pelas personalidades criadas por ele, cada qual com sua biografia e estilo próprios. Fui reler seus poemas, buscando aprender com alguém que fez das suas muitas almas, companheiras. Alguém que conseguiu concretizar em poesia uma experiência que diz respeito a todo mundo, facilitando que entremos em contato com nossas próprias transformações. Se você também se percebe em transformação e isso te assombra, talvez esse poema ajude a dissipar o estranhamento:

“Não sei quantas almas tenho.

Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem achei.

De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem,

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que julguei que senti.

Releio e digo: “Fui eu?”

Deus sabe, porque o escreveu.”

24–8–1930

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993). — 48.

Guilherme Sant’Anna é psicólogo (CRP 05/57577) formado pela UERJ e atualmente cursa o mestrado em Psicologia Social nessa mesma universidade. Ele realiza atendimentos de psicoterapia online e, se você quiser entrar em contato, pode fazê-lo pelos seguintes meios:

Instagram: https://www.instagram.com/guilhermesantanna.psi/

E-mail: guilhermesantpsi@gmail.com

Originally published at https://www.sulacapnews.com.br on June 4, 2021.

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Guilherme Sant'Anna

Psicólogo. Escrevo pois a existência me exige; publico os escritos por saber que as exigências vêm em diversas formas, e as palavras nos ajudam a respondê-las.